REORGANIZAÇÃO NEUROFUNCIONAL
(Método Padovan)
"A
coisa mais bela que o homem pode experimentar é o misterioso. É esta a emoção
fundamental que está na raiz de toda ciência e arte."
EINSTEIN
Vamos falar de coisas muito simples e
conhecidas de todos nós. São simples porque pertencem à natureza e nós as
conhecemos atavicamente.
Se plantarmos um grão de feijão num ambiente
adequado, já sabemos de antemão o que vai ocorrer: ele vai brotar, crescer com
suas características próprias, vai dar vagens dentro das quais encontraremos
sementes iguais àquela que plantamos. Isto acontece porque cada semente possui
um programa genético bem determinado.
Todo ser vivo é assim. Desta forma, já se sabe
o que vai ocorrer no seu desenvolvimento. O mesmo se passa, portanto, com o ser
humano: nasce um bebê e sabemos que, no futuro, ele deve atingir as
características de um ser adulto, homem ou mulher. Tudo isto nos parece tão
natural que sequer atentamos para os milagres que se desenrolam à nossa frente,
a cada dia! É um botão de flor que desabrocha; um joão-de-barro que constrói
sua casa, sem nunca tê-lo aprendido; uma criança ensaiando seus primeiros
passos! Em cada ser vivo está sempre
ocorrendo alguma mudança.
Também no ser humano estas mudanças acontecem,
desde que é gerado até o momento de sua morte. E isto é o que denominamos de desenvolvimento. Não importa que este
desenvolvimento seja motor, ou de linguagem, ou intelectual, ou mesmo
emocional. Tudo é desenvolvimento.
Mesmo na nossa personalidade ocorrem mudanças, conforme nossas vivências e
nossos aprendizados. Não é porque já somos adultos que paramos de nos desenvolver...
Sempre estamos nos modificando, queiramos ou não, graças às sábias leis da
natureza!
ANDAR - FALAR - PENSAR
Ao estudarmos o desenvolvimento de um ser
humano, muitas abordagens podem ser enfocadas. Para Steiner (1981), uma das
conexões mais importantes para conhecimento e aplicação na educação - e, por
extensão, também num processo terapêutico - é o que se refere às relações entre
o ANDAR, o FALAR e o PENSAR. Ele afirma que estas três atividades definem o ser
humano como tal: "o homem é o ser
que anda ereto, usa uma linguagem codificada e elabora idéias, isto é, o ser
que pensa". É importante compreender como Steiner (1981) caracteriza
cada uma dessas atividades.
ANDAR não é um simples locomover-se.
Erguer-se e andar ereto é apenas o traço mais visível de um processo
muito mais amplo e complexo. É um processo evolutivo que leva a criança de uma
posição horizontal à posição vertical. Ela vai ter que vencer a força da
gravidade e colocar seu corpo no espaço, com equilíbrio e harmonia, dominando
todas as direções espaciais. Até conseguir ficar de pé a criança passa por
várias fases: rola, rasteja, engatinha e anda. Isto ocorre, entretanto,
no caso de uma criança que tenha todo o desenvolvimento normal. Ela pode,
porém, não cumprir, ou não cumprir integralmente, todas estas fases. E dizemos,
então, sabiamente, que ela, por exemplo, "pulou" o engatinhar. E
porque dizemos que "pulou" uma fase? Porque, mais uma vez
atavicamente, sabemos que é natural e normal que ela engatinhe. Todas estas fases
são inerentes à própria natureza humana e são atingidas por impulsos do próprio
organismo. Se pertencem ao programa genético humano, naturalmente devem ser
importantes dentro do desenvolvimento de uma criança.
FALAR não se restringe apenas à palavra
oral, mas abarca qualquer tipo de comunicação. Há vários tipos de linguagem:
gesto, mímica, leitura, escrita, matemática, música, código Morse e tantas
outras. Segundo Pedro Bloch, nas Ilhas Canárias existe uma comunicação através
de assobios. Parece que ainda a usam para a leitura dos Salmos, nas cerimônias
religiosas. Assim, as pessoas se comunicam de várias formas, e a primeira
comunicação da criança é o próprio corpo. Quando ela estende os braços para ser
apanhada no colo, não deixa de ser uma comunicação. Como diz Boadella (1992),
"mesmo o silêncio absoluto nos diz
algo da pessoa. É impossível o indivíduo não se comunicar".
PENSAR não deve ser entendido apenas
como a possibilidade de elaborar idéias, mas também como as capacidades de
aprender e de se adaptar ao meio em que vive o indivíduo.
Como exemplo, podemos lembrar da história do
"menino-lobo" de Aveyron, França. Quando encontrado, na adolescência,
tinha um comportamento muito próximo ao dos lobos: andava de quatro; tomava
água lambendo, exatamente como fazem os animais; uivava como os lobos (era a
sua linguagem). Isto significa que ele aprendeu e se adaptou ao meio ambiente
que lhe foi oferecido. Mas, se tomarmos um pequeno animal, como o gato, e o
criarmos longe de seus semelhantes, apenas no meio de seres humanos, ao chegar
à idade adulta ele vai se comportar exatamente igual a seus irmãos gatos: vai
andar de quatro (e não ereto como os homens que o criaram), vai miar (e não
falar), vai ter as mesmas reações comportamentais que seus semelhantes, como se
sempre tivesse convivido com eles.
E podemos perguntar: porque será que o homem
(o menino-lobo) pareceu perder sua identidade, ou sua índole de ser humano (ao
andar de quatro, uivar, etc.), e o gato manteve suas características de gato?
Exatamente porque o ser humano tem a capacidade de se adaptar e de aprender,
características incluídas naquilo que Steiner (1981) denomina de pensar.
Os animais, em geral, são programados para
cumprir seu potencial genético, não podendo modificá-lo. Com o homem, porém, é
diferente. Ele também possui sua programação genética, mas, para torná-la
efetiva, necessita de um meio ambiente adequado. Em o tendo, cumprirá seu
processo de desenvolvimento, que é igual para todos (pertence ao programa
genético), aprendendo a andar, falar e pensar. Mas, além disso, cada um
de nós pode aprimorar capacidades próprias. Uns desenvolvem mais suas
capacidades motoras, que estão ligadas ao processo do andar; outros
desenvolvem mais a atividade do falar; outros ainda desenvolvem mais sua
parte intelectual, o pensar. Tudo isto pode acontecer porque o ser
humano tem a capacidade de poder escolher, ele tem um livre arbítrio! É
o poder do pensamento... Só o homem tem esta maravilhosa capacidade de pensar,
que o distingue dos animais.
CONEXÕES ENTRE ANDAR, FALAR E PENSAR
Existe sempre uma manifestação que caracteriza
cada uma destas três atividades.
Dizemos que a criança começa a andar quando
ela se ergue e se locomove verticalmente, o que ocorre por volta de 1 ano de
idade. Entre um ano e meio e dois anos é que podemos dizer que a criança começa
a se comunicar por meio da linguagem oral. E quando podemos dizer que a criança
começa a manifestar sua capacidade de pensar, como atividade de elaborar
idéias? Para Steiner (1981) isto ocorre por volta de três anos de idade, quando
ela começa a dizer "eu" para si mesma.
Estas três atividades se interrelacionam, se
interdependem e se desenvolvem paralelamente, embora em cada idade haja a
predominância de uma delas, como há também uma seqüência na aquisição e na
manifestação da característica mais evidente de cada uma.
Como já dissemos, a criança começa a andar por
volta de um ano , a falar por volta de dois anos, e a pensar por volta de três
anos. Nesta mesma seqüência, diz Steiner (1981), há uma certa dependência de
uma para a outra atividade. Afirma ele: "por um misterioso PROCESSO do organismo humano, da mesma maneira como
aprende a criança a andar, a orientar-se no espaço, a deslocar-se de um lugar a
outro, chega o andar a manifestar-se como linguagem. O falar, portanto, é um
produto do andar, isto é, é um produto da orientação no espaço".
Continua Steiner (1981): "é um fato
verdadeiro que, quando a criança está começando a falar, o organismo inteiro é
ativo. Os movimentos exteriores se transformam nos movimentos internos da
linguagem”.
Esta afirmação pode parecer muito estranha,
mas também Quirós (1979), um grande foniatra argentino, admite que todo o
corpo, todo o S.N.C., toma parte no processo da fala: "é difícil encontrar uma parte do S.N.C. que possa não ter alguma
relação com a comunicação ou com a linguagem. Mesmo a medula espinal, que
poderia parecer não ter relações com estas funções essenciais, também traz uma
contribuição muito importante, como a de informar o córtex cerebral sobre a
existência da postura e dos movimentos das extremidades e de outras partes do
corpo, o que permite ao indivíduo dispor de todo o seu corpo em função da
correta correspondência de signos e símbolos com seus semelhantes. Reafirmamos,
pois, que não há tecido nervoso central que possa chegar a não estar ligado com
a linguagem, na ampla acepção deste termo".
Piaget, assim como Quirós, também se refere à
conexão entre estas três atividades referidas por Steiner (1981): "a inteligência sensório-motora, que antecede
a linguagem, prepara, no terreno da ação elementar, aquilo que mais tarde vai
se transformar em pensamento refletido". Afirma ainda Piaget que deve
haver uma ponte entre a inteligência sensório-motora e o pensamento refletido.
E assim ele se coloca: "...é a
linguagem que se desenvolve numa determinada ordem e só se transforma em
pensamento quando este está apto a se deixar transformar".
E o que isto significa? Que tudo depende de um
amadurecimento neurológico para poder manifestar-se. Piaget e Steiner dizem a
mesma coisa com palavras um pouco diferentes. Este trata do ANDAR (para Piaget,
inteligência sensório-motora), do FALAR (para Piaget, a linguagem), e do PENSAR
(para Piaget, o pensamento refletido).
Outros autores tratam do mesmo assunto com
designações diferentes, mas que significam a mesma coisa. Vigotskii, Luria e
Leontiev (1988) publicaram um livro intitulado Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. Quirós e Schrager (1979)
escreveram Lenguaje, Aprendizaje y
Psicomotricidad.
Todos tratam do mesmo assunto, isto é, das
relações entre as três atividades que constituem a própria definição do ser
humano:- andar, falar e pensar. Não se pode separá-las, da mesma forma que não
se pode dividir o homem.
Dessa forma, como o falar se desenvolve a
partir do processo do andar, o pensar se desenvolve a partir da evolução da
linguagem. Se por um lado a fala é o veículo que expressa o pensamento, por
outro lado não se pode pensar sem a linguagem. O falar e o pensar estão tão
interrelacionados que mal se pode distinguir o que pertence a um ou a outro,
quando se trata de atividades intelectuais.
O médico que estava encarregado de tratar
daquele menino-lobo de Aveyron disse ao enfermeiro que o ajudava: "faça-o falar, pois só assim poderemos saber
se ele pode pensar". Rozental (1983), ao se referir ao autista,
afirma: "o fracasso da fala
entorpece, evidentemente, o desenvolvimento de outras habilidades intelectuais,
como o pensamento abstrato, a formação de conceitos ou o pensamento crítico,
que dependem do desenvolvimento das habilidades verbais".
Analisando todas essas colocações é que
ficamos convictos de que não adiantava colocar uma criatura diante de um
espelho para ensiná-la a falar ou para corrigir certos desvios de articulação.
Ou, ainda, usar os mais variados jogos com figuras cujos nomes são escritos com
os mesmos fonemas.
Tomamos conhecimento da conferência de Steiner
sobre ANDAR, FALAR e PENSAR pouco tempo antes de haver concluído o Curso de
Fonoaudiologia. Terminamos este Curso insatisfeitos, não com a parte
teórico-científica (que, aliás, foi muito boa, com professores competentes e
com um programa muito bem cuidado), mas com a parte prático-terapêutica. Não
queria tratar dos sintomas propriamente ditos, mas sim daquilo que teria
causado esses sintomas, ou seja, daquilo que os antecedia.
ORGANIZAÇÃO NEUROLÓGICA
Acreditei no que disse R. Steiner, que o
PROCESSO do andar é que levava ao falar. Faltava descobrir qual era esse
processo.
Tive, então, a grande sorte de conhecer o
trabalho de Temple Fay e seus seguidores, Carl Delacato, Glenn Doman, Raimundo
Veras, Edward Le Winn e outros.
O processo natural do conhecimento humano é um
contínuo apoiar-se no conhecimento dos que antecederam e preparar
caminhos para os que seguirão. E assim caminha toda a humanidade na sua
evolução gnóstica. Ao se escrever um trabalho científico, uma tese, até se
exige citação bibliográfica. Isto significa na realidade que as novas idéias se
apoiaram em conhecimentos anteriores. A ciência é como se fosse uma verdadeira
pirâmide, onde cada um coloca seu pé no ombro de outros e deveria se dispor a
oferecer também seu próprio ombro para que esta pirâmide possa continuar
crescendo. Mas, é muito importante que cada um não se envaideça do pouco
que conseguiu contribuir para abrir novos caminhos. E muito menos devemos nos
esquecer daqueles que nos ofereceram seus ombros...
Às vezes, quem nos permitiu dar um passo à
frente nem sabe que nos serviu de apoio, mesmo porque alguns deles, que nos
legaram seus conhecimentos, suas criações, suas indicações, já nem existem
mais! Particularmente, queremos aqui render nossa sincera e humilde homenagem a
todos os autores citados, e especialmente a Rudolf Steiner e a Temple Fay,
cujas filosofias e indicações nos proporcionaram a oportunidade de ajudar a
tantas criaturas que nos procuraram para que suas dificuldades fossem sanadas
ou diminuídas.
Temple Fay, um neuro-cirurgião americano,
viveu e conviveu com a Segunda Guerra Mundial. Juntamente com seus
colaboradores, em especial Doman e Delacato, descrentes dos métodos então
vigentes, fizeram estudos e experiências em torno do desenvolvimento do ser
humano. Além de suas experiências pessoais, utilizaram o trabalho monumental de
Gesell sobre o desenvolvimento de crianças normais.
Não cabe aqui contar toda a história do
trabalho de Temple Fay. Vamos apenas citar os conceitos básicos a partir dos
quais ele desenvolveu seu método. Sua primeira premissa foi a de que a
ontogênese (desenvolvimento de cada indivíduo) recapitula, em certos aspectos,
a filogênese (evolução das espécies).
Chamou a este desenvolvimento, que leva a
criança de uma posição horizontal até ficar em pé e andar, de Organização Neurológica
(que se dá, portanto, através do próprio desenvolvimento ontogenético).
Delacato assim a define: "Organização
Neurológica é essa condição fisiologicamente ótima que se completa unicamente
no Homem, como resultado de um desenvolvimento neural ontogenético
ininterrupto. Esse desenvolvimento recapitula o desenvolvimento neural
filogenético; começa por volta do primeiro trimestre de gestação e termina, em
indivíduos normais, aproximadamente aos seis anos e meio de idade. Como
acontece com todos os mamíferos, no Homem esse desenvolvimento ordenado
progride verticalmente através da medula espinal e de todas as outras áreas do
S.N.C., até o nível do córtex. O desenvolvimento final peculiar ao Homem
realiza-se a nível do córtex e é lateral (da esquerda para a direita ou da
direita para a esquerda)". Afirma ainda que: "para ser totalmente humano, o Homem precisa
ser capaz de usar linguagem. A linguagem no Homem é o resultado do
desenvolvimento filogenético do Sistema Nervoso. A linguagem, no
desenvolvimento de um indivíduo, é o resultado do desenvolvimento e da
organização do seu Sistema Nervoso".
Vamos atentar cuidadosamente para esta última
afirmação, que resumindo significa: a linguagem é o resultado da organização
neurológica. E a Organização Neurológica é descrita como o
desenvolvimento ontogenético, isto é, as fases pelas quais a criança passa até
que se possa colocar numa posição ereta e se locomover, alternando o avanço dos
pés, ou seja, andar.
Quando percebemos que havíamos encontrado a
descrição daquilo que R. Steiner chamou de processo do andar, foi como se
tivéssemos descoberto o Paraíso Perdido!
REORGANIZAÇÃO NEUROLÓGICA
Temple Fay e companheiros observaram, e isso
em vários povos e civilizações do mundo, que crianças normais, não importa em
que povo, faziam sempre, em seu desenvolvimento, os mesmos movimentos
estereotipados, aos quais chamaram de "padronizações". Observaram
também que crianças com lesões cerebrais não conseguiam executar aqueles
movimentos.
Pensaram então: "se fizermos com que o paciente, mesmo passivamente, execute estes
movimentos padrões, será que o seu S.N.C. vai "aprender" e assumir
depois o seu comando?". Assim o fizeram e observaram que, realmente, a
criança passava a executar aqueles movimentos. Mas, mais do que isso,
perceberam também que, algumas vezes, o desenvolvimento prosseguia normal, como
se se tivesse tirado um bloqueio que impedia esse desenvolvimento. Após as
"padronizações", incluíram também os demais movimentos que são
inerentes ao desenvolvimento natural das crianças, tais como rolar, rastejar,
andar de quatro, etc.. Os resultados foram os mesmos.
A esse procedimento chamaram de Reorganização
Neurológica (RON), que deve ser compreendida como a recapitulação do desenvolvimento ontogenético, fase por fase, na mesma
seqüência do desenvolvimento normal.
Ora, para mim, Fonoaudióloga que procurava,
como terapia, algo que antecedesse aos sintomas, foi um grande achado.
Lembrando o que Steiner disse, que o processo
do andar é que leva ao falar (compreenda-se aqui como qualquer tipo de
linguagem), convenci-me de que tinha encontrado meu caminho. Comecei a aplicar
em algumas crianças, e em outras não. Percebi que nas que recebiam a
Reorganização Neurológica as melhoras eram muito mais rápidas e efetivas.
Assim, passei a usá-la em todos os casos de fala e linguagem, com resultados
bastante positivos. A RON trabalha o corpo, e devemos trabalhá-lo porque ele,
por assim dizer, é o precursor da linguagem, da aprendizagem da leitura e da
escrita. A linguagem gestual e a mímica vêm muito antes da fala articulada.
É bom esclarecer aqui que a RON não é o único
procedimento dentro do nosso processo terapêutico. Ela serve como base em todos os casos e, dependendo de
cada distúrbio, outros exercícios são feitos, conforme as necessidades
específicas.
FUNÇÕES REFLEXO-VEGETATIVAS
Como Fonoaudióloga, entretanto, parecia-me
faltar algo para complementar o método idealizado por Temple Fay. Na sua
filosofia, afirmava ele que se uma criança não conseguisse fazer uma atividade,
por exemplo, engatinhar, não se deveria treinar o engatinhar mas, sim,
trabalhar as atividades que antecediam aquela dificuldade. Sabendo que as
Funções Reflexo-Vegetativas (respiração, sucção, mastigação e deglutição) são conhecidas
como funções pré-lingüísticas, isto é, funções que preparam a neuro-musculatura
para possibilitar a articulação dos fonemas, das palavras, da fala como um
todo, comecei a observar que crianças com problemas de fala (principalmente os
portadores de paralisia cerebral) tinham essas funções bastante prejudicadas e
que os pacientes afásicos perdiam parcialmente as praxias dessas funções.
Seguindo o mesmo raciocínio filosófico de Temple Fay, ao invés de tentar
corrigir a fala e a articulação propriamente ditas, comecei a trabalhar estas
funções essenciais, pré-lingüísticas, por elas mesmas.
Cabe aqui esclarecer como desenvolvemos este
trabalho. Por um convite do Dr. S. Interlandi, nome respeitado
internacionalmente, fui trabalhar junto ao Curso de Pós-Graduação em Ortodontia
da USP, onde permaneci quase 6 anos. A preocupação, então, era com os desvios
das funções reflexo-vegetativas acima citadas, especialmente respiração bucal e
deglutição atípica, principais fatores determinantes para recidivas de casos
tratados ortodonticamente.
O Dr. Interlandi, com visão ampla para a
época, achou que uma fonoaudióloga poderia ajudar neste aspecto, pois se
tratava de funções da boca. Quando
estudei fonoaudiologia, na faculdade nem se falava em deglutição atípica. Da
mesma forma, na faculdade de odontologia pouco se sabia sobre fonoaudiologia.
Numa troca de estudos e pesquisas, juntamente
com o Dr. Alael de Paiva Lino, foi possível aprofundar os estudos sobre este
assunto (naquela época, eu já estava a par da filosofia de Temple Fay).
A partir daí, e sabendo que a mesma
musculatura responsável pelas funções de respiração, sucção, mastigação e
deglutição, também o é pela articulação da fala e pela manutenção da forma das
arcadas dentárias, pude desenvolver um novo método para a correção e reeducação
dessas funções reflexo-vegetativas. Chamei a este método de Mioterapia
Funcional Integrada. Integrada porque envolve todas as funções da boca. Não
vamos aqui descrever o método, que já foi publicado na Revista Ortodontia, em
1976, como consta da bibliografia apresentada. Os efeitos terapêuticos do
método foram tão positivos que passaram a fazer parte da “minha” RON.
Sabemos que os proprioceptores deflagram
impulsos que são levados, através de todo o sistema nervoso, até o córtex, para
que o Homúnculo de Penfield seja ali fixado, dando como conseqüência o que
conhecemos por Esquema Corporal. O Esquema Corporal, para Quirós, não é saber
nomear as partes do corpo, mas poder dominar seu corpo em cada movimento
desejado. Este é o processo de maturação natural que torna as estruturas
neurológicas operacionais. O indivíduo que tem o seu Homúnculo bem impregnado,
ou seja, seu Esquema Corporal maduro, pode fazer qualquer movimento com seu
corpo, inclusive os movimentos para a fala.
Como vimos acima, várias informações da
periferia podem atingir o córtex cerebral, mais precisamente as áreas
sensitivo-motoras (Homúnculo de Penfield); porém, devemos ter em mente que esta
representação do corpo, denominada de somatotopia, também é encontrada na
medula espinal, no cerebelo e até no próprio tálamo.
Todos os movimentos executados nos exercícios
da RON fazem parte do programa genético do ser humano, levando propriocepção
dos músculos (fusos neuro-musculares), dos tendões (órgãos neuro-tendinosos) e
das articulações (receptores das cápsulas articulares). A região da boca é
muito rica em extero- e proprioceptores, e todo ser humano suga, mastiga,
deglute e respira. Desta forma, a inclusão dos exercícios das Funções Reflexo-Vegetativas
vem complementar, significativamente, o método original da RON. Este novo
método tem sido chamado de Método Padovan de Reorganização Neurofuncional.
Por outro lado, quero esclarecer que a minha
prática terapêutica difere, sob vários aspectos, daquela proposta por Doman e
Delacato. Trabalho com um enfoque diferente, principalmente porque, por trás do
que faço, a filosofia antroposófica (de Steiner) predomina. O método pedagógico
preconizado por esta filosofia (conhecida internacionalmente como Pedagogia
Waldorf) só admite que se inicie a alfabetização quando a criança começa a
trocar os dentes, momento em que o S.N.C. está devidamente amadurecido,
possibilitando a aprendizagem natural da leitura e da escrita. Nesta Pedagogia
nada é antecipado, aguardando-se o momento do amadurecimento adequado para cada
atividade. Cada momento é relevante -
sempre que podemos dizer que a criança está apta ou madura para uma determinada
ação, significa que ela alcançou a maturação daquela possibilidade no seu
S.N.C.. Devemos respeitar sempre o amadurecimento neurológico, e é por isto que
é tão importante conhecer bem as etapas evolutivas. Existem muitos autores que
tratam do assunto, mas considero a fonte mais completa o trabalho de Gesell.
Outra diferença é quanto à seqüência dos
exercícios. No método que era chamado Doman-Delacato, e que atualmente foi
mudado para Método para o Desenvolvimento do Potencial Humano, é feita uma
avaliação do paciente e se determina em que nível do desenvolvimento ele se encontra,
começando-se os exercícios a partir de um nível imediatamente anterior.
Von Bekesy assim se refere ao Sistema Nervoso
Central: “O S.N.C. é um intrincado
complexo de circuitos de realimentação. Se dermos os impulsos mais primitivos,
os caminhos se abrem e novos circuitos podem ser formados”. Por este
motivo, começo sempre dos exercícios mais primitivos, prosseguindo e
obedecendo, em cada sessão terapêutica, a todas as fases evolutivas naturais.
Também diferem os métodos quanto à intensidade
e freqüência dos exercícios. No método
Padovan, as sessões são geralmente de 30 ou 45 minutos, duas vezes por semana.
Somente em alguns casos mais graves essa freqüência é aumentada para, no
máximo, cinco vezes por semana. Cada exercício é repetido várias vezes, de
acordo com a possibilidade física e/ou a necessidade de cada paciente e de cada
distúrbio, procurando-se evitar, ao máximo, qualquer fadiga muscular.
Outro fator de diferenciação é quanto à
presença dos pais durante as terapias. Creio serem os pais peças importantes na
terapia de seus filhos, mas apenas como pais, que observam, acompanham e
informam sobre os problemas e as mudanças ocorridas nos filhos. Não é muito
fácil assumir dois papéis difíceis ao mesmo tempo: serem pais e terapeutas. Por
serem tão importantes, solicito sempre a um dos pais (na maioria das vezes, a
mãe) que assista a todas as terapias. A presença da mãe tranqüiliza a criança e
a mãe tem o ensejo de saber o que está se passando com o filho. Algumas vezes,
em determinados exercícios, e quando necessário, ela poderá ajudar o terapeuta.
OS EXERCÍCIOS DO MÉTODO
Vou descrever sucintamente os exercícios, pois
o nosso propósito é apenas dar uma idéia do que é o Método Padovan de
Reorganização Neurofuncional. Não caberia, num artigo, ensinar um método (que é
simples, mas não tão fácil de aplicar), pois os exercícios precisam ser
perfeitos para que enviem só informações corretas ao S.N.C.. Os principais
exercícios são:
Padronização Homolateral - é feita em
decúbito ventral, com o rosto voltado para o mesmo lado em que os membros,
superior e inferior, estão flexionados. Os membros do outro lado ficam em
extensão para baixo, ao longo do corpo. Troca-se de lado, alternadamente.
Padronização Cruzada - também em decúbito
ventral. A cabeça continua voltada para o braço que está flexionado. O outro
membro superior fica com a mão sobre as costas, e é a perna deste lado que vai
ser flexionada, enquanto o outro membro inferior fica em extensão. Assim, braço
e perna flexionados se opõem. Também esta posição vai sendo invertida,
alternadamente.
Existem outros quatro exercícios que antecedem
as duas padronizações e que não vão ser descritos aqui porque exigiria muito
espaço. Contudo, os dois exercícios que poderíamos dizer mais importantes são
as padronizações acima.
Após as padronizações, vamos fazer as
atividades próprias do desenvolvimento natural e normal de todos os indivíduos.
Trabalha-se com os vários tipos de locomoção da criança, sempre na ordem natural do desenvolvimento.
Rolar
- é tão natural que dispensa qualquer explicação.
Rastejar Homolateral - na mesma posição
usada para a padronização homolateral. O paciente impulsiona o corpo com o
halux do membro inferior flexionado e, com a mão do mesmo lado aderida ao solo,
puxa o corpo todo para a frente, sempre alternando os lados.
Rastejar Cruzado - com o tronco mais
elevado, deixa-se que o paciente rasteje espontaneamente. Se ele não conseguir
o movimento cruzado (mão direita com perna esquerda e vice-versa), deixamos que
o faça como quiser e, com o tempo, quando melhorar nos exercícios de
padronização cruzada, ele o conseguirá sozinho.
Engatinhar
- também dispensa comentários.
Exercício do Macaco - é engatinhar com
as pernas em extensão. Neste exercício, trabalha-se muito com a força dos
braços. Muito importante para os disgráficos.
Ficar de Cócoras e Levantar - deve ser feito com a planta
dos pés apoiada no chão (note-se que há uma fase na evolução das crianças, na
qual elas ficam muito tempo de cócoras, brincando).
Marcha Cruzada - de pé, a marcha deve
ser feita com movimentos acentuados para se estimular bem os proprioceptores.
Uma das mãos toca nas costas enquanto a outra bate no terço distal da coxa
oposta, que deve estar elevada. Só fazemos com crianças maiores de três anos.
Não se faz também com pacientes que, embora de idade cronológica maior que três
anos, não tenha ainda alcançado esta idade neurológica.
Os exercícios acima devem ser feitos na mesma
ordem com que foram apresentados. Podemos notar ainda que, com esses exercícios
- ou atividades - o paciente passa, gradativamente, da posição horizontal para
a postura vertical, tal qual ocorre no desenvolvimento normal.
NOTA: - Os exercícios que se seguem não foram
publicados na Revista por falta de
espaço.
Cambalhota - naturalmente, faz-se
apenas com pacientes que possam fazê-la sem qualquer prejuízo físico, de
qualquer tipo. Em portadores da Síndrome de Down só se faz cambalhota com a
liberação específica de seu médico.
Rede Giratória - há que tomar cuidado e
não fazer este exercício com pessoas que enjoam. Após algum tempo (dois a três
meses), vai-se incluindo aos poucos e, com certeza, o paciente vai se
beneficiar dele e não vai mais enjoar. É muito importante para o estímulo
vestibular.
Exercícios Visuais - é uma série de
exercícios (obedecendo sempre ao desenvolvimento normal), que geram estímulos
chamados de Reflexos Foto-Motores. São exercícios mono- e binoculares. Tomaria
espaço demais para explicar sua aplicação.
Exercícios de Mão - também é uma série
grande, que tomaria espaço demais para explicar.
Exercícios de Coordenação
Viso-Manual-Motora - após os exercícios visuais e de mão, podemos fazer
várias modalidades de jogos com bola.
Pular Corda - é um exercício muito
importante para a orientação têmporo-espacial. Também há varias modalidades que
podem ser feitas, dependendo do paciente.
(Fim
da Nota)
Há ainda vários outros exercícios, tais como
pular em um só pé, saltitar, marcha saltitante com ritmo, etc.. Pode-se até
incluir algumas brincadeiras infantis, pois fazem parte do desenvolvimento
natural da criança. São, em geral, jogos universais. Não cabe, também aqui,
descrevê-los.
Após os exercícios de corpo acima descritos,
fazemos os das Funções Reflexo-Vegetativas: respiração, sucção, mastigação e
deglutição. Em seguida, trabalhamos a colocação de fonemas, com exercícios bem
específicos, de acordo com cada patologia.
VERSOS
Todos os exercícios são acompanhados por
versos, recitados pelo terapeuta. Procura-se escolher versos com aliteração (na Revista, por equívoco, foi usada a
palavra alteração) de fonemas,
especialmente com os fonemas que o paciente ainda não emite corretamente (e
assim a estimulação se dá com modelos corretos). Procura-se ainda escolher
versos que contenham boas mensagens, para aumentar o vocabulário e excitar o
pensamento. São importantes para levar ritmo às pessoas que não o tem e, além
disso, os músculos respondem melhor aos movimentos rítmicos. Os versos são um
grande motivador porque todos os pacientes gostam, não importando a idade.
A
QUEM APLICAR ESTE MÉTODO
Como Fonoaudióloga que somos, vamos aplicar o método
às pessoas com problemas de fala e/ou de linguagem. Aliás, as pessoas que
procuram este tratamento são, em geral, portadoras desses distúrbios. Eles
podem estar presentes não só nos portadores de algum tipo de deficiência (tais
como a síndrome de Down, a paralisia cerebral, a deficiência mental, o autismo,
etc.), mas também em pessoas normais e inteligentes, portadoras de simples
dislalias, de dificuldades na aprendizagem de leitura e/ou escrita, etc..
Os problemas de fala e linguagem, para Temple
Fay, “não constituem problemas
diferentes, e sim diferentes graus de um mesmo problema”, isto é,
problemas que têm a mesma origem, que pode ser alguma desordem do
desenvolvimento ou na organização do S.N.C.. Se a causa é a mesma, o tratamento também deve ser o mesmo,
variando conforme o grau do distúrbio.
C
O N C L U S Ã O
Como se pode constatar, o método consiste em
exercícios muito simples e que pertencem à própria natureza humana. Não
são movimentos criados artificialmente
ou elocubrados. São tão simples que podem levar as pessoas a duvidarem de sua
eficácia. A natureza é simples. Suas leis estão aí, à disposição daqueles que
tenham a capacidade de reconhecê-las, captá-las e sistematizá-las, para depois
delas dispor adequadamente. Como afirma Einstein: “não existe nenhum caminho lógico para a descoberta das leis elementares
do Universo - o único caminho é a intuição. O mecanismo do descobrimento não é
lógico e intelectual - é uma iluminação súbita, quase um êxtase. Em seguida, é
certo, a inteligência analisa e a experiência confirma a intuição”. Rudolf
Steiner e Temple Fay tiveram esse privilégio, de terem tido a intuição e
a inteligência para confirmar pela experiência essa intuição. E eu....
Eu tive a grande sorte de conhecer e poder usufruir do trabalho de ambos...
Voltando ao pensamento de Einstein, citado no
início deste trabalho, gostaria de acrescentar que não sei se trabalho com a
ciência ou com a arte. Só sei que tanto o Sistema Nervoso quanto o Homem são
ainda misteriosos para os nossos parcos conhecimentos. Uso um pouco de
arte quando recito versos acompanhando os exercícios. Uso também ciência
porque, ao estudar o Sistema Nervoso, tomo conhecimento de fatos científicos
esclarecedores, como, por exemplo, a existência da Plasticidade Neural e dos
Fatores Neurotróficos, que, acredito, justificam plenamente o trabalho que
faço.
Repito que este método é muito simples... Tão
simples como a própria natureza, como já dissemos anteriormente. E, na nossa
opinião, aquele que segue o que a sábia natureza nos mostra e ensina, tem menos
chances de errar.
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