FRACASSO ESCOLAR
Optamos por uma
psicopedagogia que permite ao sujeito que não aprende fazer-se cargo de sua
marginalização e aprender a partir dela, transformando-se para integrar-se na
sociedade, mas na perspectiva da necessária transformação desta. (Sara Paín,
1982).
A psicopedagogia
adaptativa, preocupada em fortalecer os processos sintéticos do ego e facilitar
o desenvolvimento das funções cognitivas, pretende colocar o sujeito em um
lugar que o sistema lhe atribuiu. (Sara Paín, 1982)
Muitas vezes,
como profissionais da educação, somos responsáveis por um “crime” similar ao de
confundir um desnutrido com um anoréxico pelo fato de ambos estarem
mal-alimentados. Um desnutrido não come, um anoréxico tampouco, mas as causas
que levaram um e outro a não comer são completamente diferentes; portanto, as
soluções também deveriam ser diferentes.
O conhecimento
(ou melhor, a informação)
é o
alimento que o sujeito aprendente precisa incorporar, transformar, metabolizar.
Ninguém diria
que um desnutrido não se alimenta porque tem um problema no aparelho digestivo,
ainda não-detectado por radiografias, ou porque padece de uma disritmia
digestiva ou de desatenção estomacal (DDE). Todavia, muitas vezes,
“o especialista” diz que um fracasso escolar pode ter como
causa a
distração, a “disritmia” ou a hipercinesia (ADD ou ADHD), situando no organismo
do aluno as “disritmias”, “hipercinesias” e “desatenções” do sistema educativo.
É certo que,
muitas vezes, o “fracasso escolar” pode intervir como fator desencadeante
de um “problema de aprendizagem” que, de outro modo, não teria
aparecido. Essa situação, que torna mais complexo e difícil o diagnóstico, exige
uma maior responsabilidade e precisão teórica por parte da psicopedagogia.
Por ter sido
privado do alimento a que tem direito e cujo cumprimento é responsabilidade da
sociedade, o desnutrido pode “esquecer-se” de registrar sinais de fome como uma
defesa necessária. Contudo, esse “esquecimento” não poderia ser confundido com
anorexia. Assim como para resolver o problema do apagamento dos sinais da fome
no desnutrido devemos intervir no contexto que o priva de alimentos, para
resolver o fracasso escolar do aluno devemos intervir no contexto que o priva
de um espaço de autoria de pensamento.
Ou seja, devemos
intervir no sistema ensinante. O fracasso escolar afeta o sujeito em sua
totalidade.
A criança que
dele padece sofre pela subestimação que sente ao não poder responder às
expectativas dos pais e dos professores. Por sua vez, a identidade não é algo
que se adquire de uma vez e para sempre, mas é produto de construções
identificatórias para as quais cumpre um papel importante os
modos como os
demais nos definem.
Para a menina e
o menino, o grupo escolar e seus professores costumam ter o lugar de prova e
reconhecimento de suas aptidões a partir dos resultados obtidos.
FRACASSO
ESCOLAR?
Por que o êxito
escolar ocupa um lugar tão grande na vida de nossos contemporâneos, crianças,
pais, educadores, governantes? Que projetos, que fantasmas recobrem essa
aspiração ao êxito? (Anny Cordié)
Entendo que o
objeto de qualquer intervenção psicopedagógica seja abrir espaços objetivos
e subjetivos de autoria de pensamento. O psicopedagogo aposta em que o
desejo de conhecer e de saber possa sustentar-se apesar das carências nas
condições econômicas, orgânicas, educativas, apesar das injustiças, dos
déficits ou das lesões biológicas.
A problemática
da aprendizagem é uma realidade alienante e imobilizadora que pode
apresentar-se tanto individual quanto coletivamente. Em sua produção, intervêm
fatores que dizem respeito ao socioeconômico, ao educacional, ao emocional, ao
intelectual, ao orgânico e ao corporal. Portanto, para sua terapêutica e
prevenção, impõe-se o encontro entre diferentes áreas de especialização:
psicopedagogia, psicologia, psicanálise, pedagogia, pediatria, sociologia, etc.
A desnutrição
alimentar e a carência afetiva, o fracasso dos ensinantes e da instituição
educativa ou as lesões cerebrais não dão conta por si só da existência do
problema de aprendizagem em um sujeito individual.
A psicopedagogia
clínica comprova que, embora seja necessário trabalhar e estudar os
determinantes enunciados (orgânicos, sociais, políticos, etc.), a capacidade de pensar e aprender (condições humanas
que nos permitem a originalidade, a diferença e o posicionamento como autores
de nossa história) ainda podem subsistir nas situações educativas, sociais,
econômicas e orgânicas mais desfavoráveis. A liberação da inteligência
aprisionada só poderá dar-se através do encontro com o prazer de
aprender que foi perdido. Por tal razão, acreditamos que nossa principal tarefa
na relação com os pacientes (aos quais denomino “aprendensinantes”) é
“ajudá-los a recuperar o prazer de aprender” e, de igual modo, pretendemos,
para nós mesmos, recuperar o prazer de trabalhar aprendendo e de aprender
trabalhando.
Nossa tarefa
inscreve-se em uma busca de mudança para os serviços de saúde mental em geral.
Essa busca tenta articular os diferentes enfoques profissionais e os
importantes recursos humanos com os escassos recursos econômicos e
institucionais, para satisfazer a ampla demanda de assistência e a urgente
necessidade de promoção de saúde na aprendizagem. A psicopedagogia vem para
explicar também que na fabricação do problema de aprendizagem como sintoma intervêm
questões que dizem respeito à significação inconsciente do conhecer e do
aprender e ao posicionamento diante do escondido.
Por último, e
não menos importante, a psicopedagogia clínica vem para dizer também que, na
fabricação do fracasso escolar, participam questões relativas ao posicionamento
dos “ensinantes professores”, mas também dos “ensinantes médicos” e do poder
médico, as quais, exibindo, por vezes, um conjunto de informações hegemônicas e
monopolistas, supõem o aprendente como um “sistema nervoso central caminhando”.
Paradoxo: na
escola, aprendem como cabeças sem corpo e, quando não aprendem, são
enviadas ao hospital onde são consideradas organismos sem inteligência nem
desejo.
Todo lugar de
saber é um lugar de poder, e nós, psicopedagogos, que pretendemos conhecer
sobre o conhecer, o não-conhecer e sobre os que não podem aprender, com
facilidade podemos cair imaginariamente em uma posição de certeza, muitas vezes
também solicitada por nossos consultantes. A pergunta que na maior parte das
vezes nos é dirigida é: “Sou inteligente?”.
Quando ocorre
uma resposta negativa, esta costuma ser aceita como um oráculo que não é
possível questionar. Além disso, a mera suposição de uma resposta assertiva
para tal pergunta – sem levar em conta que a inteligência é construída e
produzida na interação social, de acordo com processos identificatórios – supõe
um abuso de poder que torna temível nossa palavra.
Nossa teoria é
frágil, mas nosso suporte é uma atitude clara e compartilhada e um princípio quase
piagetiano: na base de toda cognição está a ação, primeiro material e, logo,
possível de ser interiorizada.
QUESTIONANDO A
ÉTICA DO ÊXITO
O fracasso oposto
ao êxito implica um juízo de valor e esse valor é função de um ideal. O sujeito
constrói-se perseguindo as idéias que lhe são propostas ao longo de sua
existência. Dessa maneira, é produto dessas identificações sucessivas que
formam a trama de seu eu. Esses ideais são essencialmente os de seu meio
sociocultural e os de sua família, ela mesma marcada pelos valores da sociedade
a que pertence. (Anny Cordié)
“Perdoamos tudo,
menos o fracasso”, este parece ser o lema que, partindo de algumas famílias e
escolas, dirige-se aos jovens.
O fracasso é o
oposto ao êxito. Não será que, para evitar ou buscar diminuir o fracasso
escolar, necessitamos reverter essa ética do êxito?
Além disso, não
teríamos que repensar o uso da denominação fracasso escolar? Tal termo
surge como parte de um questionamento necessário à postura que depositava o
problema na criança, chamando de problema de aprendizagem o que era um problema
de ensino.
Entretanto, não
teremos caído também (e aí me incluo porque eu mesma utilizo/utilizava a
expressão fracasso escolar) nas redes da ética do êxito ao nomear5 como fracasso
(resultado oposto ao resultado êxito) algo que estamos tentando
analisar como processo?
Anny Cordié
(1994) assinala que “... a evolução da sociedade deu lugar a uma nova
patologia: o fracasso escolar (...) trata-se da rápida mudança do mundo do
trabalho em uma sociedade cada vez mais tecnicista. Às novas exigências desta
sociedade agregam-se os estragos provocados pela exploração dos testes de
nível...”.
O uso que se faz
dos testes nas escolas é cada vez mais discriminatório. No Apêndice a este
capítulo, transcreverei fragmentos de uma conferência em que abordo essa
questão e, por sua vez, no Capítulo 2 de meu livro O saber em jogo desenvolvo
as questões que dizem respeito ao necessário posicionamento clínico.
Para atuar sobre
as causas que geram o fracasso escolar, é necessário que a psicopedagogia saia
do consultório e, ao dirigir-se a outros âmbitos, como a escola, não tente
levar o consultório à escola, nem propor uma psicopedagogia superior, que exclua
ou desvirtue a pedagogia. A intervenção psicopedagógica precisa atuar em
interdisciplina com outras disciplinas, em particular com a pedagogia, sem
tentar copiá-la, nem substituí-la.
A psicopedagogia
ou o psicopedagogo que trabalhe em uma escola deverá possuir uma formação
psicanalítica talvez maior do que quando atende em seu consultório, já que
deverá dar conta dos fenômenos transferenciais em suas diversas manifestações.
Por sua vez, deverá conhecer questões que dizem respeito ao “grupal” e ao
institucional.
PARA ENSINAR
MELHOR, APRENDER MELHOR
Como o fracasso
escolar é uma resposta reativa à situação escolar, a psicopedagogia precisa
trabalhar com professoras e professores, educadoras e educadores. Embora eles também
sofram e possam ser vítimas da iatrogenia da instituição, eles são, sem dúvida,
a cara visível da escola para a criança.
Tendo em vista
sua prática na “formação de formadores”, Jacky Beillerot (1996) assinala:
... A formação
(do professor) relaciona-se com toda a pessoa: suas capacidades conscientes,
assim como sua afetividade, seu imaginário e seu inconsciente total. Isto é,
fantasmas, resistências, inibições, etc.
A psicopedagoga
argentina Silvia Iannantuoni (1996) escreve:
... a escola como
instituição tende à submissão a determinadas pautas, em vez de promover o fato
artístico e a autoria da produção; não surpreende o fato de que não conte com a
possibilidade de questionar a si mesma. As
respostas de que
“as crianças não leem”, “não gostam de ler”, “escrevem sempre as mesmas
orações”, “apresentam muitos erros de ortografia”, etc., sempre encontram
linearmente suas causas fora do ambiente escolar. Não servem para questionar-se
dentro dele.
Como a escola
pode propiciar o surgimento de sujeitos escritores, representantes de suas ideias,
gestores de atos criativos? Talvez não apenas enunciando-os formalmente em
objetivos e/ou expectativas de sucesso. Talvez possibilitando que os docentes
possam mostrar-se como modelos de autoria de pensamento e de palavra, como
sujeitos que possam desmontar seus “duendes e suas princesas”, porque, como
pretender que o aluno que vai à escola seja um sujeito construtor de suas
próprias aprendizagens, se não se outorga ao docente que, como ensinante, se
encontre com sua autoria?...
Os professores,
muitas vezes, recebem cursos em que são ditas coisas interessantes sobre como
ensinar, mas que são, de fato, uma “representação dramática” de como não
ensinar. Tal contradição, comum em muitos âmbitos educativos, ocorre porque as
professoras e os professores, mais do que cursos, precisam de formação e “a
formação é clínica, pois toma lugar na história individual; porque une,
necessariamente, saberes e saber, o passado e o futuro do sujeito” (Beillerot,
1996).
Referindo-se à
experiência de cursos de capacitação docente, a psicopedagoga argentina Soledad
Lugones (1999) escreve:
... Fazemos
apontamentos em silêncio, com o olhar centrado no professor e com nosso corpo
quieto, aderido à cadeira... uma só voz, um só rosto...
... Esta é uma
cena que se repete invariavelmente em nossa história como “alunos”. Essa Matriz
encarnada em nosso corpo omite o Saber e a Potência de nosso ser aprendentes.
Para autorizar-nos
a Ensinar, devemos fazer-nos autores ... acreditar em nós. Olhar o valor que
tem o que fazemos, apropriar-nos da singularidade que possuímos ... Fazer-nos
autores de nossos pensamentos.
Hoje em dia,
fala-se muito sobre a necessidade de Capacitação Docente. Todavia, muito pouco
se fala e se reflete sobre como os Docentes e as Instituições se capacitam e
como são seus espaços de formação...
Uma menina
brasileira, María, respondendo ao pedido de desenhar “uma pessoa aprendendo”,
desenha uma menina levada pela polícia e diz que a menina não está aprendendo
porque a estão “prendendo” (o que equivale a “sendo levada pela polícia”).
Embora o som das palavras “prendendo” e “aprendendo” seja muito similar, María
reconhece a diferença, já que, quando explica de que se trata seu desenho,
explicita-o. Não aprender na escola supõe um ato de violência da escola frente
à criança.
María,
a menina em questão, pertence a uma região carente e sua família não pode
satisfazer as necessidades básicas. Na escola, a menina é marginalizada em
relação ao restante da turma “por vir suja à aula”, segundo a professora. Se,
em outro contexto escolar, uma criança produzisse a mesma frase e um desenho
similar, poderíamos interpretar a equivalência simbólica aprender e aprisionar
(“prender”) como produzida por sua própria dramática inconsciente e,
portanto, trabalharíamos para ajudá-la a ressignificar o sentido de aprender,
pois tal deslizamento de significação poderia perturbar a aprendizagem. Ao
contrário, junto com María, necessitamos reconhecer (lhe) que sua frase e seu
desenho mostram uma verdade silenciada. “Desenhou e pensou algo que poucos
observam. É assim, María: quando estão perseguindo uma pessoa, ela não pode
aprender. Eu creio que deveria dizer isto para a sua professora; o que você
acha?” Ante uma intervenção como a anterior, María conseguirá começar a mudar
de posição e a reconhecer-se pensante. Um propósito do trabalho psicopedagógico
na escola consiste em conseguir que o “fracasso escolar” não seja denúncia que
renuncia a enunciar. É construir espaços
para que as professoras e os professores encontrem-se com suas autorias e,
assim, sintam a paixão por produzir com seus alunos e com suas alunas.
DIFERENÇAS ENTRE
FRACASSO ESCOLAR E PROBLEMA DE APRENDIZAGEM
... Uma análise
econômica das superestruturas educativas permite-nos compreender por que o
sujeito aliena-se na ignorância, mas necessitamos ver qual a estrutura que
possibilita a disfunção da inteligência e como o faz...
(Sara Paín) Em 1990, no
livro A inteligência aprisionada, eu já dizia que o “fracasso escolar”
responde a duas ordens de causas que se encontram imbricadas na história de um
sujeito – próprios da estrutura familiar e individual daquele que fracassa em
aprender e próprios do sistema escolar, sendo estes últimos determinantes.
Dizia também que é preciso não confundir os fracassos escolares (“desnutrição de
conhecimentos”) com os problemas de aprendizagem (“anorexia-bulimia do
conhecimento”) para poder intervir antes que sejam produzidos, pois, muitas
vezes, um pode derivar do outro. Como diagnóstico, um fracasso escolar pode
diferenciar-se de um problema de aprendizagem, analisando a modalidade de
aprendizagem do
aprendente em sua relação com a modalidade ensinante da escola.
Nas situações de
fracasso escolar, a modalidade de aprendizagem do sujeito não se torna
patológica; quando se constitui um problema de aprendizagem (inibição
cognitiva ou sintoma), a modalidade de aprendizagem altera-se.
... Para prevenir
o fracasso escolar, necessitamos trabalhar em e com a escola (realizar um trabalho para que o professor
possa conectar-se com sua própria autoria e, portanto, seu aluno possa aprender
com prazer, denunciar a violência encoberta e aberta instalada no sistema
educativo). Mas, uma vez gerado o fracasso e conforme o tempo de sua
permanência, o psicopedagogo também deverá intervir para que o fracasso do
aprendente, encontrando um terreno fértil na criança e em sua família, não se
constitua em um sintoma neurótico... (Alicia Fernández, 1990)
Quando se trata
de resolver o problema de aprendizagem que provém prioritariamente de causas
que se referem à estrutura individual e familiar da criança (problema de
aprendizagem-sintoma ou inibição), torna-se necessária uma intervenção
psicopedagógica mais pontual. De acordo com cada situação, será possível optar
por:
a) tratamento
individual e
familiar psicopedagógico;
b) grupo de
tratamento psicopedagógico de crianças;
c) grupo de
orientação paralelo de mães;
d) oficinas de
arte, arte-terapia, recreação com objetivos terapêuticos, etc.;
e) entrevistas
familiares psicopedagógicas, etc.
Em porcentagem
menor de crianças, o fracasso pode responder à construção de um modo de
pensamento derivado de uma estrutura psicótica e, em uma proporção ainda menor,
pode ser devido a fatores de déficit orgânico. Em ambas as situações, em geral,
ainda que por diferentes causas, a criança não pode estabelecer uma comunicação
compreensível com a realidade ou seja, poderá ter dificuldades para aprender. Estamos
diferenciando as diversas respostas que as crianças assumem para expressar
diferentes problemáticas em sua aprendizagem. Na aprendizagem escolar,
reflete-se toda a dinâmica social e familiar. Nosso trabalho será saber escutar
e olhar para além e para aquém daquilo que se percebe.
Estou
diferenciando esquematicamente situações que se mostram como não-aprendizagem,
respondendo a diversas causas:
• fracasso
escolar;
• problemas de
aprendizagem da ordem do sintoma;
• inibição
cognitiva;
• oligotimia,
baseada em uma estrutura psicótica.
A gravidade da
problemática corresponde à crescente ordem do enunciado.
Todavia, a
extensão da problemática corresponde de forma decrescente à ordem do enunciado.
O “problema de
aprendizagem reativo”, fracasso escolar, afeta o aprender do sujeito em suas
manifestações sem chegar a aprisionar a inteligência: muitas vezes, surge do
choque entre o aprendente e a instituição educativa que funciona de forma
segregadora. Para entendê-lo e abordá-lo, devemos apelar para a situação
promotora do bloqueio.
A criança que
está nessa situação não precisa, na maioria das vezes, de tratamento psicopedagógico.
A intervenção do psicopedagogo é necessária, mas será dirigida,
fundamentalmente, à instituição educativa (metodologiaideologia-linguagem-vínculo).
A intervenção
terapêutica psicopedagógica torna-se inapropriada para abordar a oligotimia
social9
que,
muitas vezes, pode funcionar como resseguro do sistema se o psicopedagogo, ao
equivocar-se no diagnóstico, torna-se cúmplice ingenuamente da situação. Os
transtornos de aprendizagem reativos exigem da psicopedagogia clínica o
planejamento de novas e mais eficazes propostas de abordagem,
assim como impõem a necessidade de perfilar estratégias preventivas.
Observando
apenas a manifestação dos problemas, sem analisar a modalidade de aprendizagem,
lamentavelmente, muitos fracassos escolares são diagnosticados de forma
equivocada e tratados por diferentes especialistas como problemas de
aprendizagem.
Quando se
diagnostica a partir do que se observa como resultado, trabalha-se com uma
modalidade de pensamento que confunde a consequência com as causas múltiplas.
O efeito de tal
confusão resulta em marginalização, expulsão e culpa do aprendente, eximindo o
sistema educativo e a instituição ensinante (da qual, como profissionais de
saúde, fazemos parte) de serem interpelados e de interpelarem-se por sua
participação na produção e/ou na manutenção desse fracasso na aprendizagem.
Além disso, são
diagnosticadas, de forma errônea, como “deficiências mentais”, muitas deficiências” no conhecimento dos diagnosticadores.
Por sua vez,
diagnosticam-se de forma errônea, com excessiva leviandade, “dislexias”,
“discalculias”, “disgrafias”, “hipercinesias”, “ADDs”: assim, fica excluída,
para os professores, a possibilidade de responsabilizarem-se por seu ensinar;
para os pais, o perguntarem-se por sua implicação, e, o que é ainda mais grave,
as crianças são colocadas como objetos de manipulação.
Muitas dessas
crianças e muitos desses adolescentes produzem um problema de aprendizagem como
mensagem inconsciente que quer ser escutada. É nessa escuta que deve incluir-se
o psicopedagogo.
Ao rotular,
faz-se calar toda possibilidade. Os rótulos funcionam como sofisticados métodos
de controle. Tanto no fracasso escolar quanto no problema de
aprendizagem, o aluno mostra que não aprende, mas, no primeiro caso,
a patologia está instalada nas modalidades de ensino da escola, e esse é o
lugar sobre qual se deve, prioritariamente, intervir.
Por outro lado,
também é preciso considerar situações que não chegam aconformar um fracasso escolar
nem um problema de aprendizagem.
Dentro dessa
ordem, a psicopedagoga brasileira Grácia María Fenelón,em uma pesquisa
realizada em Goiás, relata uma série de alterações constantesna escrita e na
leitura de jovens que aprendem, descrevendo-as como “problema de aprendizagem
normal”. Na comunidade estudada por Fenelón, a população
indígena é importante e encontra-se marginalizada. Um jovem, ao ler “idioma”,
lê indioma, sem reconhecer que leu algo diferente. Se o professor assinalasse
a mudança como erro, ficaria abortada, uma vez mais, a emergência do saber.
Seria diferente
se o professor pudesse dizer ao jovem: “Você disse algo muito interessante,
criou –talvez sem dar-se conta – uma palavra que mereceria existir, indioma,
para dar conta desse idioma indígena oprimido pelo idioma português
oficial”.
Como nos ensina
a psicanálise, a predisposição para alterar o texto, ao lê-lo, corresponde, em
muitos casos, a “suas esperanças por pensamentos alheios reivindicadores”.
Conclui Grácia
María Fenelón (1995): a
partir de Freud pode-se compreender que os enganos, antes tidos como dificuldades
de aprendizagem (omissões, acréscimos, trocas de letras) e, portanto,
associados à deterioração das funções egóicas, da atenção, por exemplo, agora
podem incluir-se em uma análise mais ampla do pensamento daquele que lê ou
escreve.
Anny Cordié
assinala (1996): ...
O fracasso escolar é uma patologia recente. Apareceu recentemente com
a instauração da
escolaridade obrigatória nos finais do século XIX e adquiriu uma importância
considerável entre as preocupações de nossos contemporâneos devido à mudança
radical da sociedade. Também, neste caso, não é somente a exigência da
sociedade moderna a que engendra os problemas, como se pensa com freqüência, mas
um sujeito que expressa seu mal-estar na linguagem de uma época em que o
dinheiro e o êxito social são valores predominantes...
Tanto o problema
de aprendizagem que constitui um “sintoma” quanto o que forma uma “inibição”
instala-se em um indivíduo, afetando a dinâmica de articulação entre os níveis
de inteligência, desejo, organismo e corpo, resultando em um aprisionamento da
inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente.
Para entender a
significação do problema de aprendizagem, deveremos descobrir a funcionalidade
do sintoma dentro da estrutura familiar e aproximarmo-nos da história singular
do sujeito e da análise dos níveis que operam.
Para buscar a
remissão dessa problemática, deveremos apelar a um tratamento psicopedagógico
clínico que se oriente para a libertação da inteligência e mobilize a
circulação patológica do conhecimento em seu grupo familiar.
INTERVIR OU
INTERFERIR?
Intervir (vir
entre). Interferir (ferir entre), “ferir”, herir em castelhado antigo e em
português.
Mesmo que, às
vezes, necessitemos intervir, tenderemos a que nossa intervenção seja da ordem
de uma “inter-versão” (incluir outra versão), sem anular as outras
possibilidades.
Se o
psicopedagogo ou a psicopedagoga vai à escola levando junto o consultório, não
poderá atender nem às crianças, nem aos professores, nem a si mesmo.
Muitas vezes, a
escola solicita ao psicopedagogo ou ao psicólogo escolar uma tarefa não-possível:
que realize um tratamento individual com as crianças que fracassam, ou que as
diagnostique e encaminhe a profissionais que as atendam fora da escola. Essa
função não é apenas impossível de ser abarcada, mas também incapacitante para o
exercício da psicopedagogia, já que a presença de um psicopedagogo nunca
poderia “atender”, desse modo, à quantidade de alunos apontados como
“problema”. O psicopedagogo, sobrecarregado com uma demanda impossível,
sente-se fracassado e a escola, assim, o expulsa. Encontramo-nos, dessa forma,
com escolas que acumulam, “expulsam” quantidades de crianças com “fracasso
escolar” e com diversos orientadores educacionais também expulsos por “fracasso
profissional”. Nem em um caso nem no outro pode-se falar de um fracasso
pessoal, seja da criança, seja do profissional.
Precisamos
perguntar-nos qual é a posição que o psicopedagogo deve assumir em uma escola.
Quem são os que demandam? Como escuta a demanda obturada das crianças na pseudo
demanda do professor? Como escuta a demanda escondida do professor na queixa
que explicita?
Se o
psicopedagogo ou a psicopedagogia aceitam o lugar de poder resolver tudo “o que
solicitam”, estarão aceitando incapacitar seu lugar. Aceitar que podem o que
não podem resultará em desconhecer o que, de fato, podem: desmoralizar-se e
abandonar.
O psicopedagogo
ou a psicopedagoga, na escola, precisam utilizar os conhecimentos e a atitude
clínica para situarem-se em outro lugar, diferente ao que têm no consultório. A
experiência de consultório pode servir-lhes muitíssimo para situarem-se diante
de professores, alunos e de si mesmos como alguém que propicia espaços de
autoria de pensamento.
A psicopedagoga
ou o psicopedagogo é alguém que convoca todos a refletirem sobre sua atividade,
a reconhecerem-se como autores, a desfrutarem o que têm para dar. Alguém que
ajuda o sujeito a descobrir que ele pensa, embora permaneça muito sepultado, no
fundo de cada aluno e de cada professor. Alguém que permite ao professor ou à
professora recordar-se de quando era menino
ou menina.
Alguém que permita a cada habitante da escola sentir a alegria de aprender para
além das exigências de currículos e notas.
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