domingo, março 09, 2014

Não tenha vergonha de contar nos dedos

O homem só chegou ao sucesso nos cálculos quando passou a usar os dedos para contar.



Por Luiz Barco
Uma leitora aflita me perguntou: - Professor, o meu filho ainda conta nos dedos. O que eu faço?
Nada, pensei, mas nem cheguei a responder, pois ela acrescentou: "A professora já disse que ele jamais vai progredir em Matemática". Eu gostaria de saber que teoria a levou a tão bizarra conclusão. Contar nos dedos significa, no máximo, que o menino é fraco em cálculo elementar - e aquele terrível vaticínio significa que a professora é ainda mais fraca em história da Matemática. Pois há vários exemplos de grandes matemáticos que foram fracos em cálculo elementar. Contar com o auxílio dos dedos é uma prática saudável e natural.
É preciso distinguir com clareza a diferença entre "senso numérico" e "contagem". Foi árduo e bonito o percurso que a humanidade percorreu e ele está bem descrito no livro Número: a linguagem da ciência, do matemático americano Tobias Dantzig, que obteve um significativo elogio de ninguém menos que Albert Einstein: "Fora de qualquer dúvida, este é o livro mais interessante que conheço sobre a evolução da Matemática".
Dantzig descreve o que chamou "senso numérico" que ocorre no homem, em alguns pássaros e alguns insetos - e em nenhum outro mamífero. Costuma-se argumentar que o senso numérico dos raros animais que o possuem é tão limitado que pode ser descartado, o que me parece ser apenas o propósito de dar ao homem uma supremacia que talvez ele não tenha. Confunde-se, no caso, o senso numérico com a habilidade que só os homens desenvolveram e que chamamos contagem. Ela está hoje tão arraigada em nosso equipamento mental que se tornou difícil estabelecer testes psicológicos capazes de medir nosso senso numérico.
Enfim, os testes possíveis revelaram que o senso numérico do homem civilizado médio raramente vai além de 4. Já os selvagens que não desenvolveram a capacidade de contar com os dedos não apresentam quase nenhuma capacidade de perceber números. Existem relatos sobre habitantes das ilhas dos mares do sul, da África, das Américas, da Austrália: eles mostram que os selvagens que não chegaram à etapa de contagem nos dedos quase não têm capacidade de perceber números.
Pesquisas sobre línguas revelam a pequena probabilidade de que nossos ancestrais fossem melhor dotados dessa capacidade, mas, de qualquer forma, a humanidade fascina pela sua aparentemente inesgotável capacidade de resolver problemas. Foram necessários muitos séculos para que nossos antepassados se dessem conta de que o dia e a noite, o par de asas de um pássaro, um casal de animais são instâncias de uma mesma idéia, o número 2. Olhando para trás, podemos nos sentir confortavelmente admirados ao verificar que nossa espécie, mesmo munida de um rude senso numérico, igual, em seus contornos, ao de alguns pássaros e insetos, conseguiu aprender, por uma série de circunstâncias, a ler padrões simétricos. E isso auxiliou poderosamente na percepção da pluralidade, pelo artifício da contagem, que levou ao moderno conceito de número. Não foi à toa que o famoso matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855) observou: "A Matemática é a rainha das ciências e a teoria dos números é a rainha das matemáticas" Não por acaso, Gauss foi o criador da teoria dos números.
De um ponto de vista histórico, até bem recentemente símbolos como lua, asas, trevo, cachorro, mão funcionavam como precursores dos nossos atuais um, dois, três, quatro, cinco... Levou tempo para que o homem associasse tais símbolos aos números - e nesse tempo ele certamente fez exercícios de contar, talhando sulcos nas árvores, marcas nas pedras ou juntando seixos. Mas foi só quando começou a usar os dedos articulados que o homem chegou ao sucesso nos cálculos. Sem esse poderoso artifício talvez não tivesse ido tão longe com as ciências exatas. Por essa razão, não me parece bom proibir as crianças de praticar esse gesto, carregado de condição humana, que as calculadoras de bolso vão tornando cada vez mais uma arte perdida. Convém não esquecer que apenas há quatro séculos nenhum manual de Aritmética seria bem considerado se não fornecesse instruções sobre o método do cálculo digital.


Fonte: Revista Superinteressante

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